Ando a comer a Madame Bovary. Ora vejamos e toca a andar: não sou só eu. Continue lendo “Quem anda a comer Joyce?”
A boca de Boris Vian
Vejamos, é a boca de Boris Vian. Durante 15 dias não se lhe ouvirá um som, sequer um sussurrado ai. Morreu-lhe o pai. E agora, que já vos dei a notícia, acrescento: não morreu, mataram-no. Eis o que cala Boris Vian: o pai foi morto a tiro, por intrusos, em sua casa, a vivenda provincial da família. Continue lendo “A boca de Boris Vian”
Em louvor dos palhaços
Uns palhaços, todos! É tão fácil, hoje, despejar os políticos pelo cano do esgoto. Palhaços, arlequins, jokers, encantadores de serpentes. E eu peço ao José Tiny, admirável ilustrador destas pobres crónicas, que desenhe aqui um, demagogo, trumpiano e com um par de botas. Mas confesso já: não consigo calçar esse fácil par de botas. Talvez os políticos não sejam os palhaços que sempre são na conversa de café ou tasca. Continue lendo “Em louvor dos palhaços”
Os dentes de Bakunine
O russo Mikhail Aleksandrovitch Bakunine ainda tinha dentes quando se encontrou, em Paris, com o alemão Karl Marx. Faço gosto em lembrar que a revolução não estava então de quarentena: era globalizante e viajava que se fartava. Reescreva-se a história: não foi o capitalismo, foi a revolução, as internacionais socialistas, com os seus eslavos, alemães, franceses, Garibaldi e os primos dele, que inventaram a globalização. Continue lendo “Os dentes de Bakunine”
Sim, sou marxista
Gosto eu bem mais de Karl Marx do que todos os marxistas juntos. Anafado, cabelos desalinhados, que o faziam parecer um urso, vejam-no com as filhas, num picnic no Hyde Park: teriam comido ovos verdes e bolinhos de bacalhau se a condessa Jenny, sua mulher, ou Helene, a governanta, soubessem fazer ovos verdes ou bolinhos de bacalhau. Continue lendo “Sim, sou marxista”
Fazia amor por amor de fazer amor
É que é um cabrão de um deserto! Eis o que um, e logo outro dos meus amigos, me disse. Falavam do confinamento destes dias, dunas de clausura, deserto de quarto, sala, cozinha, batidíssimo pela fina areia doméstica. Ora, ninguém conheceu o deserto como o conheceu Isabelle Eberhardt. Continue lendo “Fazia amor por amor de fazer amor”
O ânus cantor
Flatulava como quem fala. E eu estou a falar – a ver se não me confundo – de Joseph Pujol. Podia descrever-lhe o rosto anguloso, o bigode farto e negro a contrastar com a palidez do rosto, mas seria confundir o cu com as calças. Não era para a cara de Pujol que seja quem for olhava. Continue lendo “O ânus cantor”
Sessenta e nove
Numero as crónicas que escrevo para esta página. (*) Esta é, categórica, a 69. O número tem a impudica alegria de tudo o que é dúbio. Lembro um jantar de amigos. Louvávamos ao Raul Solnado o talento humorístico, mas ele chutou para canto, jurando pelas alminhas que humor espontâneo e repentista tinha o actor Armando Cortez. E logo, rolando palavras como cerejas, contou uma história carregada de virtude. Continue lendo “Sessenta e nove”
Sylvia levou Joyce ao colo
Toda a lésbica tem em si uma missionária. E peço já que não me crucifiquem, que a Páscoa já passou deixando a ressurreição pela hora da morte. A missionária que toda a lésbica acrisola não é tese minha, mas sim de Diana Souhami, tese vertida no seu livro No Modernism Without Lesbians. Continue lendo “Sylvia levou Joyce ao colo”
Adagio para Nova Yorque
Destruir Nova Iorque é como apagar o “Cântico dos Cânticos” da Bíblia. Nova Iorque transmite ao mundo uma energia tão sublime como “os beijos da tua boca, amor melhor do que o vinho”, que o amado e a amada reciprocamente louvam no “Cântico”. Lembro-me da minha primeira vez, antes desses aviões-bomba que pulverizaram as Torres Gémeas, muito antes deste vírus que agora enterra nova-iorquinos em valas comuns. Continue lendo “Adagio para Nova Yorque”
Água quente para o banho
Tivesse eu podido roubar uma das nove mulheres de Picasso e raptaria, com o ardor de um Rómulo, Françoise Gilot. Não só pela doçura do seu redondo talento de pintora, mas também pela bela cabeça morena, comandada pela arguta simetria das maçãs do rosto a que a velhice daria, depois, proeminência não destituída de ternura. E nem sequer falei do seu peito comovente que negava, distraído, a lei da gravidade. Continue lendo “Água quente para o banho”
Há fumo e há fogo
Estou a ver, com estes olhos que, rezo a Deus, o vírus ainda não coma, o puto Didier a correr pelas ruas de Dakar, de tronco nu e a levar com as nuvens de Dicloro-Difenil-Tricloroetano. Didier é da minha idade, meu kota um ano apenas, e correu pelas ruas da capital senegalesa como eu corri pelas de Luanda. Nesse tempo em que mesmo o leão falava a um elefante de trombas, matava-se a minúscula e infecta bicharada voadora lançando ondas de DDT nas ruas tropicais. No Senegal como em Angola. Continue lendo “Há fumo e há fogo”
Deus e o diabo
Era uma vez um vírus chamado Hitler. Em 1943, dava já tão mau nome aos vírus, que mesmo alguns dos seus subordinados o queriam matar. Hitler tinha vindo a Smolensk, cidade russa, saborear mais um viral ataque das suas tropas. O general Henning von Tresckow recebeu-o, cordato pela frente, indignado nas costas. E pediu a um dos acompanhantes de Hitler que levasse no avião, de volta, um pacote com garrafas de conhaque para um amigo, que trabalhava no quartel general de Hitler, em Berlim. Era a bomba que deveria explodir no avião e liquidar o vírus nazi. Continue lendo “Deus e o diabo”
O herói e os canalhas
Agora vejam o herói. Tem um nórdico metro e cinquenta e dois e ia ganhando a guerra. Mas antes de falar deste finlandês de olhos agudos e mãos camponesas nas quais quase podemos apalpar a ternura com que o indicador direito acaricia o gatilho, deixem-me chamar aqui os canalhas. Continue lendo “O herói e os canalhas”
O papa apóstata
De que cor são os olhos do Papa Francisco? Apesar de já se ter derramados sobre eles a indecifrável cor da velhice, são claros como os do meu avô Brigas, que ofereceu o corpo a cargas contrabandistas, antes de ser emigrante na Argentina. Terá o avô Brigas cruzado em Buenos Aires o menino Bergoglio? Que interessa. O que eu queria dizer é que os olhos de Francisco se iluminam sempre que sorri. Ou seja, iluminam-se muitas vezes. Continue lendo “O papa apóstata”